UM POUCO DE TUDO QUE DE FATO VIVE EM MIM, DO AR QUE EU RESPIRO, POR QUEM EU SUSPIRO, MEUS SEGREDOS MAIS OCULTOS, MEUS DESEJOS MAIS ABSURDOS, MEU UNIVERSO INTERIOR, MINHAS HISTÓRIAS DE AMOR, AS PAGINAS RASGADAS, FOLHAS AMASSADAS E LETRAS APAGADAS, DE UMA BIOGRAFIA CENSURADA...
quarta-feira, 23 de novembro de 2011
terça-feira, 22 de novembro de 2011
SANTO EXPEDITO
Arte de Jean-Baptiste-Siméon Chardin
Solidão é escutar a casa do outro como se fosse a sua.
Na hora em que atinge esse ponto, esteja certo: você conheceu o isolamento perfeito. Um isolamento físico e mental. Um isolamento de mangueira de chuveiro.
Você descobriu que não tem amigos. Você descobriu que o mundo é um segundo ventre, e não existe cesariana. Você descobriu que não tem passado, o que é muito mais grave do que descobrir que não tem futuro.
Você dorme e toma emprestado o despertador do vizinho. Não que a parede seja fina entre os imóveis, a sensibilidade da audição triplicou com o vazio.
Nada lhe resta senão obedecer ao relógio. Como uma criança deitada na classe aguardando o sino da escola.
Você bebe qualquer som. Consegue identificar o motor da geladeira, coisa que nunca reparava. O que é longe é perto. No fundo tanto faz a distância, não tem nenhum lugar para ir, nem vontade de ficar.
Ao andar pela sala, vê a necessidade de trocar o forro das almofadas, de arrumar infiltrações no teto, de corrigir o mau contato do abajur. Mas não tem vontade de consertar a vida. O conserto exige esperança.
Você se julga morto. O café é chá, a sopa é suco, a segunda-feira é feriado, a terça é sábado, a quarta é domingo, a quinta é paralisação, a sexta é greve geral.
Você está no apartamento alheio mais do que no seu próprio apartamento. Porque nada acontece em seu domínio. O estranho do 302 é quase um colega de quarto, um irmão emprestado, a pessoa mais próxima da história recente.
O interfone do vizinho apita e corre para atender, ansioso por algum resgate.
Você não encontra o que falar consigo, e antes reclamava da falta de assunto com a esposa. Você não suporta dormir pelo excesso de quietude, e antes lamentava a algazarra dos filhos.
Você não tem o que pensar, já conhece seus pensamentos de cor, se acha um livro lido e previsível.
Está no ponto de puxar conversa quando alguém liga por engano. É capaz de discar o 190 para lembrar onde mora.
Ninguém pisa em seu capacho, formado por cartas, contas e propagandas.
Solidão é estar absolutamente entregue ao ouvido, todo ruído do lado de fora soa como de dentro. Um morador puxa a descarga e você corre ao corredor jurando que tem companhia. É ouvir passos na escada e confiar que foi na sua sala. É ouvir um grito abafado na rua e disparar para a cozinha.
É sofrer um susto atrás de outro sem motivo.
Solidão é acompanhar um por um dos seus batimentos cardíacos. Enquanto o monitoramento é distraído, tudo bem. Na hora em que você começa a contar, esteja certo: você enlouqueceu.
O nome disso é desemprego.
Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 22/11/2011
Porto Alegre (RS), Edição N° 16894
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