O tédio me agarra pela traqueia. O jornal na tevê apresenta manchetes do mês passado e eu já vi todos
os filmes do mundo. Cataloguei todas as cores do meu quarto. Os entorpecentes não são mais
engraçados. Você precisa cortar esses cabelos, rapaz. Parece um daqueles franceses pirados. Dois
dedos de uísque feito de milho e uma espiada pela janela na mercearia da esquina. O vento sujo
varrendo os calcanhares do povo, tentando erguer a minissaia das meninas, jogando areia nos olhos.
Será que vai chover?
Ouço a canção que o Morrissey fez pra mim. Os vizinhos de baixo gritam quando a luz falta. Sacolas
plásticas de supermercado cruzam planando no esquadro da minha alma. O fim de tarde chega
assobiando pra mudar bruscamente o humor do dia. Corre-corre. Ouvi alguém gritando – olha o
temporal. Corri e fechei as janelas. Só que você entrou pela porta. Encharcada até os ossos e a primeira
peça de roupa, aquele velho medo de relâmpago, o rímel grafite escorrendo para o ralo no decote,
precisando de ajuda para subir a bicicleta, reclamando o tempo todo.
Seu olhar – vitrine dos meus melhores dias. Fica, eu digo. Me ajuda a matar o tempo até a luz voltar.
Fica e come da minha comida. Pelo menos até a chuva acabar de cair. Deu agora na televisão que a
cidade está debaixo d’água, mandaram ninguém se mexer. Consegue? Tenta, vai. Empresto uma toalha,
uma camiseta G, um par de meias e a minha boca quente. Você já bateu recorde de permanência, de
toda maneira. Vamos lá, fica, na minha geladeira tem o resto de um frango de padaria, a gente abre um
vinho bom. Juro fazer rolinhos na sua franja até você pegar no sono.
Aí você gasta um de seus preciosos sins e deixa pra depois mais um daqueles seus adeus, que, aliás, tem
de sobra na sua bolsa de pano, sempre à mão, para casos de emergência. E eu me pergunto: você vai
ficar porque está chovendo, ou está chovendo porque você vai ficar? Tanto faz. Se eu bem te conheço,
basta me despedir usando a tática do me-liga-qualquer-coisa. Foi assim, desse jeito, que até hoje
nenhum dos seus adeus durou para sempre.
Gabito Nunes (http://www.gabitonunes.com.br/2012/03/me-liga-qualquer-coisa.html)
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