quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Divã - Martha Medeiros

"Vidas não são entregues em kits personalizados, compostos por dois sonhos, meia dúzia de projetos e uma única maluquice: essa costuma ser a munição que cada pessoa recebe ao nascer, para que a ordem seja mantida na sociedade. Eu aceito a parte que me toca, mas ninguém me impede de incrementar o dote. Não sou mais nenhuma garota e sei que não preciso passar o tempo que me sobra contabilizando erros e acertos. Tudo é acerto, principalmente quando se está mais perto do fim do que do começo."

(trecho do livro/filme Divã - Martha Medeiros)

terça-feira, 22 de novembro de 2011


Todos querem o perfume das flores, mas poucos sujam suas mãos para cultiva-las. Augusto Cury

SANTO EXPEDITO

Arte de Jean-Baptiste-Siméon Chardin

Solidão é escutar a casa do outro como se fosse a sua.

Na hora em que atinge esse ponto, esteja certo: você conheceu o isolamento perfeito. Um isolamento físico e mental. Um isolamento de mangueira de chuveiro.

Você descobriu que não tem amigos. Você descobriu que o mundo é um segundo ventre, e não existe cesariana. Você descobriu que não tem passado, o que é muito mais grave do que descobrir que não tem futuro.

Você dorme e toma emprestado o despertador do vizinho. Não que a parede seja fina entre os imóveis, a sensibilidade da audição triplicou com o vazio.

Nada lhe resta senão obedecer ao relógio. Como uma criança deitada na classe aguardando o sino da escola.

Você bebe qualquer som. Consegue identificar o motor da geladeira, coisa que nunca reparava. O que é longe é perto. No fundo tanto faz a distância, não tem nenhum lugar para ir, nem vontade de ficar.

Ao andar pela sala, vê a necessidade de trocar o forro das almofadas, de arrumar infiltrações no teto, de corrigir o mau contato do abajur. Mas não tem vontade de consertar a vida. O conserto exige esperança.

Você se julga morto. O café é chá, a sopa é suco, a segunda-feira é feriado, a terça é sábado, a quarta é domingo, a quinta é paralisação, a sexta é greve geral.

Você está no apartamento alheio mais do que no seu próprio apartamento. Porque nada acontece em seu domínio. O estranho do 302 é quase um colega de quarto, um irmão emprestado, a pessoa mais próxima da história recente.

O interfone do vizinho apita e corre para atender, ansioso por algum resgate.

Você não encontra o que falar consigo, e antes reclamava da falta de assunto com a esposa. Você não suporta dormir pelo excesso de quietude, e antes lamentava a algazarra dos filhos.

Você não tem o que pensar, já conhece seus pensamentos de cor, se acha um livro lido e previsível.

Está no ponto de puxar conversa quando alguém liga por engano. É capaz de discar o 190 para lembrar onde mora.

Ninguém pisa em seu capacho, formado por cartas, contas e propagandas.

Solidão é estar absolutamente entregue ao ouvido, todo ruído do lado de fora soa como de dentro. Um morador puxa a descarga e você corre ao corredor jurando que tem companhia. É ouvir passos na escada e confiar que foi na sua sala. É ouvir um grito abafado na rua e disparar para a cozinha.

É sofrer um susto atrás de outro sem motivo.

Solidão é acompanhar um por um dos seus batimentos cardíacos. Enquanto o monitoramento é distraído, tudo bem. Na hora em que você começa a contar, esteja certo: você enlouqueceu.

O nome disso é desemprego.





Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 22/11/2011
Porto Alegre (RS), Edição N° 16894

Consideração - Tati Bernardi

Já tinha um mês e resolvi ir nessa festa com cara de festa que você vai. Toda pessoa de cabelo cheio que entrava eu achava que era você.

Assim como acho quando estou na rua, no supermercado, na fila do cinema, dormindo. Virei uma caçadora de pessoas cacheadas. Virei uma caçadora de você em todas as pessoas. Então você chegou na festa. E eu apenas sorri e sorri e sorri. Porque era isso. Eu queria te ver apenas. A dor numa caixinha embaixo dos meus pés e eu mais alta pra poder te abraçar sem dor, perto da sua nuca e por um segundo.

Eu te acho bonito de formas tão variadas e profundas e insuportáveis. Eu vejo você parecendo um leãozinho no fundo da festa. Suando e analisando. O rei escondido escolhendo a presa que não vai atacar. Com sua eterna tristeza cheia de piadas afiadas. Suas facas afiadas de graças para defender as tristezas que nadam baixas nos seus olhos de quem não quer fazer mal. Mas faz. Seus olhos. Em volta um riozinho melancólico e no centro o sol feliz e novinho chegando. E tudo isso vem forte como um soco de buquê de flores de aço no meu estômago. E eu quero ir até você e te dizer que eu sei que você desmaia quando faz exame de sangue. E como eu gosto de você por isso.

E como eu queria tirar todo meu sangue em pé pra você jamais cair. E como eu gosto de você por causa do e-mail que você mandou pro seu amigo com problemas. Como gosto quando você lembra de alguém e precisa demonstrar naquela hora porque tem medo da frieza das suas distrações. Suas listas de culturas e atenções.

Os vasinhos. Os vasinhos coloridos da cozinha me matam. A história do milagre que te salvou da queda da estante. Você arrepiado falando em anjos. Essas suas delicadezas em detalhes dormem e acordam comigo. Acariciam e perfuram meu peito vinte e quatro horas por dia. Uma saudade dos mil anos que passamos, ou das três semanas. A loucura de gostar tanto pra tão pouco ou simplesmente a loucura de tanto acabar assim. Fora tudo o que guardei de você, me restou a consideração que você guardou por mim. Sua ligação depois, quando me encontra. Sua mão estendida. Sua lamentação pela vida como ela é. Sua gentileza disfarçada de vergonha por não gostar mais de mim. A maneira que você tem de pedir perdão por ser mais um cara que parte assim que rouba um coração. Você é o mocinho que se desculpa pelo próprio bandido. Finjo que aceito suas considerações mas é apenas pra ter novamente o segundo. Como o segundo do meu nariz na sua nuca quando consigo, por um segundo, te abraçar sem dor. O segundo do seu nome na tela do meu celular.

O segundo da sua voz do outro lado como se fosse possível começar tudo de novo e eu charmosa e você me fazendo rir e tudo o que poderia ser. O segundo em que suspiro e digo alô e sinto o cheiro da sua sala. Então aceito a sua enorme consideração pequena, responsável, curta, cortante. Aceito você de longe. Aceito suas costas indo. Aceito o último cacho virando a esquina. O último fio preso no pé da minha cama.

Não é que aceito. Quem gosta assim não come migalhas porque é melhor do que nada, come porque as migalhas já constituem o nó que ficou na garganta. Seus pedaços estão colados na gosma entalada de tudo o que acabou em todas as instâncias menos nos meus suspiros. Não se digere amor, não se cospe amor, amor é o engasgo que a gente disfarça sorrindo de dor. Aceito sua consideração de carinho no topo da minha cabeça, seu dedilhar de dedos nos meus ombros, seu tchauzinho do bem partindo para algo que não me leva junto e nunca mais levará, seu beijinho profundo de perdão pela falta de profundidade. Aceito apenas porque toda a lama, toda a raiva, todo o nojo e toda a indignação se calam para ver você passar. 

http://www.tatibernardi.com.br/blog/post.jsp?idPost=85

5 status pós-termino de relacionamento



Amizade fraterna: E vocês terminaram. Não por conta de brigas, não por conta de problemas, não por conta de algum conflito impossível de solucionar, mas sim porque gradualmente os caminhos que antes se cruzavam viraram retas paralelas e vocês concluíram que, ao menos romanticamente, nunca mais iam se encontrar. Do tempo juntos ficou o carinho, ficou a intimidade, ficou uma certa sintonia e todo aquele conhecimento que um tinha sobre o outro. Você sabe que pode contar com ela quando fica chateado, ela sabe que pode contar com você quando fica triste, e vocês sabem que o amor que um dia sentiram não sumiu, apenas se transformou num sentimento bem menos físico e muito mais próximo da amizade. Ou ao menos é isso que vocês sempre explicam quando todo mundo vem dizer que é óbvio que vocês ainda tão transando e esse papinho de amizade e retas paralelas só pode ser sacanagem, na boa.


Amizade com tensão sexual: E vocês terminaram. Vieram as brigas, vieram os problemas, vieram os conflitos e vocês, antes que a convivência se tornasse insuportável, decidiram que era melhor dar um basta na relação pra evitar que até mesmo as possibilidades de amizade fossem colocadas em risco. Mas ainda que já tenham devolvido os discos, dividido os livros, destrocado os travesseiros jogados na cama e exista a certeza de que o relacionamento já deu o que tinha que dar e insistir nele vai causar apenas problemas, o seu corpo ainda tem como reflexo segurar o dela, o pescoço dela ainda lembra do contato da sua boca, você ainda sente tesão no jeito como ela come morangos e ela ainda fica arrepiada quando te vê xingando durante partidas de futebol. Mas claro, vocês não explicam nada disso quando todo mundo vem dizer que é óbvio que você estão transando, ainda que concordem silenciosamente sobre essa parte da amizade ser meio sacanagem.


Neutralidade: E vocês terminaram. Um pouco por brigas, um pouco por desgaste natural, um tanto por sua causa, um tanto por causa dela. E por mais que o que vocês tiveram algum dia tivesse parecido tudo, o que sobrou depois que vocês terminaram pareceu muito, muito pouco. Coisas foram devolvidas, fotos foram deletadas, amigos foram repartidos e após algum tempo vocês descobriram que as relações entre os dois, mais ou menos como o contato diplomático entre a Venezuela e as Ilhas Maurício, estava ali naquela linha tênue entre o reduzido e o inexistente, já que tudo que unia vocês desapareceu e hoje praticamente nada parece realmente lembrar que vocês algum dia estiveram juntos exceto o fato de que aquela garota de franjinha na mesa ao lado sabe que você, quando tenta dormir de bruços, ronca como um cavalo asmático.


Inimizade velada: E vocês terminaram, de forma mais ou menos amigável. Não tanto porque ainda fossem amigos – os dois sabiam que o limite da amizade tinha sido ultrapassado depois da primeira vez em que começaram a se xingar em filas de mercado e ela usou uma lata de pó royal como arma – mas porque os dois tentaram ser adultos e evitar maiores demonstrações públicas de hostilidade. Hoje freqüentam os mesmos lugares, ainda conversam com as mesmas pessoas, mas não é exatamente difícil perceber que ainda existe uma certa nuvem de ressentimento, principalmente quando os dois se evitam em eventos, ela diz que ele parece ter engordado e ele fica ressaltando que todos os namorados dela depois dele são meio veados.


Inimizade declarada: E tudo terminou mal. Alguém vacilou feio, alguém pisou na bola em proporções abissais e só não pode ser dito que "um amor assim violento quando torna-se mágoa, é o avesso de um sentimento, oceano sem água" porque ele fez questão de usar todos os discos do Caetano que ela tinha como frisbees, na frente do prédio dela, com uma labrador comprado especialmente pra isso e ela afogaria ele em qualquer oceano, com água ou não. Não existem possibilidades de amizade, não existe a chance de continuar nos mesmos círculos, nem mesmo há a esperança de uma convivência civilizada e a única razão pela qual os dois ainda são convidados para um mesmo evento é a mesma que motiva transeuntes a parar pra ver acidentes de carro. Alguns amigos acreditam que o rancor vai passar, outros dizem que eles ainda vão ser amigos. Os mais precavidos apenas conferem a capa do Meia-Hora todas as manhãs. Só por via das dúvidas, você sabe como é.

O AMOR - TATI BERNARDI

Poderia ser assim...

O amor

Semana passada liguei pro meu melhor amigo e convidei para um cinema. A gente não se falava desde o ano novo, quando tudo deu errado pro nosso lado. De tempos em tempos sumimos, falamos umas coisas horríveis de quem se conhece demais. Ele topou desde que fosse daqui pra frente, preguiça de conversar da briga e tal. E fomos. Cheguei antes, comprei. Ele chegou depois, comprou água. Porque eu comprei os ingressos, ele comprou também uns doces e disse que pagaria o estacionamento. Porque ele pagaria o estacionamento, eu disse que daria a carona da volta. E com meu coração tão calmo eu voltei a sentir o soninho de sofá de casa com manta que sinto ao lado dele. A gente não se beija nem nada, mas quando vai ver pegou na mão um do outro de tanto que se gosta e se cuida e se sabe. Já tivemos nossos tempos de transar e passar nervoso e aquela coisa toda de quem ama prematuramente. Mas evoluímos para esse amor que nem sei explicar. Ele me conta das meninas, eu conto dos caras. Eu acho engraçado quando ele fala "ah, enjoei, ela era meio sem assunto" e olha pra mim com saudade. Ele também ri quando eu digo "ah, ele não entendeu nada" e olho pra ele sabendo que ele também não entende, mas pelo menos não vai embora. Ou vai mas sempre volta. Não temos ciúmes e nem posse porque somos pra sempre. Ainda que ele case, more na Bósnia, são quase quinze anos. Somos pra sempre. Ele conta do filme que tá fazendo, eu do livro. Os mesmos há mil anos. Contar é sem pressa de acabar. Se ele me corta é como se a frase que eu fosse falar fosse mesmo dele. É um exibicionismo orgânico, como se meu silêncio pudesse continuar me vendendo como uma boa pessoa. São quinze anos. É isso. Ele me viu de cabelo amarelo enrolado. Eu lembro dele gordinho e mais baixo. Ele sempre comprou meus testes de gravidez, mesmo a suspeita nunca sendo nossa. Eu já fui bem bonita numa festa só porque ele queria me fazer de namorada peituda pra provocar a ex mulher. Minha maior tristeza é que todo novo amor que eu arrumo vem sempre com algum velho amor tão longo e bonito. E eu sofro porque com pouco tempo não consigo ser melhor que o muito tempo. E de sofrer assim e enlouquecer assim, nunca dou tempo de ser muito para esses amores porque estrago antes. Mas meu melhor amigo é meu único amor. O único que consegui. Porque ele sempre volta. E meu coração fica calmo. E ele vai comigo na pizzaria e todos meus amigos novos morrem de rir porque ele é naturalmente engraçado e gente boa e sabe todos os assuntos do mundo. E todo mundo adora meu melhor amigo. E eu amo ele. E sempre acabamos suspirando aliviados "alguém é bobo como eu, alguém tem esse humor" e mais uma vez rimos da piada que inventamos, do pai que chega pro filho e fala: sua mãe não é sua mãe, eu transei com outra". E esse é meu presente dessa fase tão terrível de gente indo embora. Quem tem que ficar, fica.

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