terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Piro no Suspiro... Elisa Lucinda

PIRO NO SUSPIRO

Pasmem os que sabiam e os que não desse meu segredo: parei de fumar. Sim, sou uma ex-fumante de um mês sem, e de trinta e seis anos com. Isto é, quase quatro décadas fumando esses cigarros que se compra em qualquer parte, nos bares, nos clubes, nos hotéis, nas portas dos colégios, nas boates, nos shoppings, nos supermercados, nos motéis, nas pousadas, nos postos, nos quiosques e outras bocas de fumo expostas e legalizadas espalhadas por aí, ao nosso dispor. Mas não escrevo para convencer ninguém a nada, não fiquei uma ex-fumante patrulhante. Sou recente e estou em estado de espanto pela nova vida. Vale dizer que eu era uma fumante cujo hábito se agravava nas festas e como delicioso acompanhante das bebidas. Falo da delícia de um gole e um trago. Quem é fumante sabe. Nessas ocasiões poderia fumar até oito cigarros, ou mais, dez. Mas em geral, dois cigarros por dia, três e pronto. Também era de hábito, depois de uma noite regada a fumaça, álcool, dança e tudo que tem numa festa, eu costumava ficar em uma abstinência natural durante todo o dia seguinte; mais que uma abstinência, uma certa ressaca, uma certa ojeriza ao cheiro do cigarro. Então me diziam: puxa, mas você fuma tão pouco que nem precisa parar. Não sei por que, há um mês, depois de um desses days after, resolvi subitamente parar de fumar, sem me preparar para isso. Aproveitei o nojo, a fala do corpo que me fazia rejeitar e pensei: acho que não volto a fumar. Logo depois, sequência direta, li num jornal que Mara Manzan tinha morrido; nossa querida, valente e divertidíssima atriz. Na matéria do óbito tinha uma declaração dela: “Não foi só o cigarro que me deu esse tumor nos pulmões, eu também cuspia fogo e engoli muito querosene nessa vida”. Na hora pensei, se eu não estivesse com esse foco, eu suprimiria a palavra só e leria que não foi o cigarro, e sim o querosene. Mas como o meu desejo era outro, eu li exatamente o que as palavras diziam: que ,além do cigarro, o querosene também a matou. Então pensei, vou parar de comprar meu câncer. Esses donos de fábrica de tabaco devem ser sócios dos laboratórios de quimioterapia como os hakers precisam produzir a doença para vender o remédio.
Sei que escrevo agora uma crônica quase dura, principalmente para quem fuma, mas não posso deixar de compartilhar essa experiência com meus iguais. Estou chocada: sem usar nenhum emplastro, sem pastilhas e outros recursos para atravessar o processo, estou sem fumar a frio. No entanto, o mundo cintila com igual força ao meu redor e, como se um espírito não fumador estivesse encostado em mim, eu não tenho a mínima vontade de fumar desde esse dia, e nunca mais. E olha que passei por testes muito difíceis, aparentemente. A saber: aniversário de Márcia do Valle, minha querida amiga, aniversarau de Maria Paula, sarau de Totonho Villerois, todos com vinho, champagne, cerveja e wisky, e cigarros para quem quisesse, atravessando a madrugada. E eu lá, com as minhas tacinhas, sem incomdar a ninguém, sem virar um evangélico chato, só me divertindo com a nova vida, tão possível, meu deus!, e o melhor, sem perder a graça. A vida me convoca a me despedir de um velho vício. Há muitos anos eu não me despedia de um velho vício! Topei. Fui no fundamento dele e achei uma tola desobediência a meu pai, um jeito de me afirmar como jovem, um jeito datado de chocar; achei também uma oralidade, uma ansiedade, uma vontade de comer o mundo como se fosse uma chupeta que comecei a sugar na hora que estava me construindo, adolescente, como a gente grande que viria a ser. Desmontado o enigma, a sensação que me invadia nos primeiros dias sem fumar é a de que esse costume em mim parece ter perdido a validade, não sou mais aquela, saí daquela moda , mudei de formato, e essa é minha mais atual transformação. Bem, para quem nasceu careca, sem dente e sem saber andar, até que essa transformação não é tão radical assim. E depois, o show da mutação não para. Quem recebe a glória de ficar velhinho pode ter o álbum das diversas fases da grande viagem, para confirmar o que digo. Nos novos dias tenho “viajado” no paladar das coisas, sempre fui boa de sentido, mas agora estou melhor. Faz sentido. Minha voz também está mais bonita. Para completar a partitura, ainda ouvi de um gentil cavaleiro, doces palavras: “hum, você sem fumar, é um poema sem palavras feito só de cheiro”; êxtase de ouvir isso.
Mas deixei para o final a invisível mão que mais me acolheu, subsidiou e deu patamar de fortaleza à minha decisão: Dona Poesia. Foi ela, meu Deus, outra vez, que numa displicente noite, ao abrir um livro de Quintana, lançou-me na cara: “Desconfia dos que não fumam: esses não tem vida interior, não tem sentimentos. O cigarro é uma maneira disfarçada de suspirar...”. Pirei! De novo Quintana tinha razão: ao fumar visitamos nossos interiores, refletimos, conversamos com nossas vozes íntimas, e é por isso que o Zeca Baleiro diz que “a solidão é o meu cigarro”, mas, para os meus propósitos, me agarrei foi no final, na função do verbo suspirar. Então comecei, só para brincar, a fumar um cigarro imaginário e tragá-lo profundamente, suspirar e soltar o ar. Dá uma onda parecida com yoga, parecida com amor. Sou romântica, e os românticos suspiram profundamente; o ar visita as vísceras, o diafragma, enche os pulmões, oxigena o cérebro e volta outro pra donde veio. Então é isso, agora eu ministro suspiros em mim quando lembro, quando quero, quando preciso, e sem me matar por isso. Espero assim, pelo menos desse jeito, adiar para muito longe o meu último suspiro. (Elisa Lucinda)

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