Parafraseando o personagem Rick Blaine de "Casablanca": de todos os cafés, de todas as cidades, no mundo todo, ela entra logo no meu. Chorando, ainda por cima. Sei lá eu por quê.
A conversa então transcorre como jazz, mesmo às vezes suas opiniões incorrendo na velha ladainha de que tudo é como é em decorrência do machismo. Não importa qual o tópico em discussão, se Ross e Rachel estavam mesmo dando um tempo naquele episódio de "Friends" em que ele dorme com outra, ou então, sei eu, se formigas têm ou não cotovelos. No mais, ela é bem agradável e perfumada. Lá fora, o vento mudou de hálito.
Ela gosta de Phil Collins, faz psicologia pelo mesmo motivo que leva 99% das estudantes da área a ingressar na tal ciência: queria antes se entender. Eu brinco morbidamente, tentando imaginar onde se enfiarão seus pacientes já que ela se refugia dos problemas em cafés, às dez da noite, quase onze, papeando sobre sua infância e filmes favoritos com rapazes pobres e estranhos e metidos a escritor. Ela ri. E me olha furtivamente, às vezes como quem paquera um cheesecake de frutas silvestres expostos além da vidraça no balcão. Eu sirvo uma parte de cheesecake de frutas silvestres, ela nega, eu insisto, é por conta da casa.
– Nossa, você realmente quer me comer, né? – ela me provoca.
E gargalha com a mãozinha no meu ombro. Eu também, embora não veja graça na verdade assim, nua e crua. Curiosamente ela não ri daquela forma áspera de fêmea deixando claro que seus cromossomos são absolutamente incompatíveis. A anedota e a risada são um jeito descolado de traduzir a atmosfera do encontro com um pouco de sadismo, admitindo a hipótese, e quebrando o gelo crostado sobre ela. Estou deixando ela falar de si mesma, como uma arapuca pra envolvê-la, como um caçador mirim atrai rolinhas indefesas e com asas contundidas.
Então, a noite conflui para uma aproximação entre nós, suas risadinhas deixam claro que o envolvimento é possível, mesmo sendo eu apenas um reles funcionário que manja uns cafés bacanas, incrivelmente charmoso, com cara de vagabundo iluminado do Kerouac – um tipo daqueles que as meninas desaprenderam a admirar com a ascendência da Apple de Steve Jobs. O cabelo fino e encaracolado e sujo de quinze horas de trabalho, o quê de homem-lobo solitário e profundo, as pupilas dilatando de vontade de morder aquele lábio inferior moreno que ela tem.
Talvez eu esteja omitindo isso com medo do usual inquérito elitista sobre a existência de livros de minha autoria em livrarias, logo guardo entre os dentes nervosos que sou, na verdade, escritor. Não um aspirante ao novo grande romance americano, mal falo inglês, meu inglês é irlandês, e ninguém entende lhufas quando pratico em voz alta – mas sou bom. Na minha casa, digo, no quartinho onde moro há duas quadras daqui, talvez falte um escorredor de macarrão ou papel higiênico, mas há uma pilha de livros, a maioria deles pra impressionar uma garota como ela.
– Então, o que mais você faz, além de ficar trancado aqui cheirando a pastel? – esse sutil rebaixamento aristocrático é um mecanismo que ela usa pra rechaçar o asco que sente dela mesma ao gostar de um cara como eu. – Sem ofensas, claro.
– Não, tudo bem. – eu pressiono as palmas das mãos sobre a bancada, empino o peito e miro a cara dela com uma confiança só comparada a Jack Nicholson em noite de Oscar. – Sou escritor.
– Como Wilde? Interessante.
– É, como Oscar Wilde. Mas sem os livros e a parte gay. Como Ernest Hemingway, William Faulkner, JD Salinger, os beatniks, americanos em geral.
– Como você é influenciável. Sabe, eu li "O Retrato de Dorian Gray" uma vez.
– Claro que leu. Sua cara. Sem ofensas, claro. O que mais você leu?
– Sei lá, não curto muito. "O Pequeno Príncipe" conta?
– Leia mais, se quiser ser algo mais na vida que esposinha de engravatadinho com crises hepáticas cada vez que a bolsa de valores vai à lona. Aos trinta, você vai precisar de um amante porque ele decidiu matar tudo no peito e você não precisa trabalhar fora. No entanto, ele não te dá filhos pra criar como ocupação porque o baque no mercado imobiliário dizimou suas ereções matinais e as noturnas são esmagadas pelo informe econômico na televisão. Então você vai se tornar uma gorda depressiva que bebe uísque com guaraná as três da tarde assistindo a reprise de Oprah, enquanto ele fode a própria secretária na mesa do escritório que você ajudou a escolher, com toda sua dedicação feminina que deveria ter sido usada pra manter-se desejável pra vagabundos como eu. Caras que, lá na frente, vão passar as tardes opacas transando com mulheres como você por alguns cheques sem cruzar, com dois zeros pra mais. Às vezes você vai atender seu único paciente em casa mesmo, o máximo longe que ele a permitiu. E adivinha? De forma inversa, a terapia funcionará melhor pra você, que vai invejar a loucura do doente em cada um dos cinquenta minutos que passar no seu divã de vinil, comprado em dinheiro vivo na Tok & Stok.
– História da minha vida. Exceto pelo estigma de gorda. – ela diz, e antes de complementar, faz uma carinha de estranheza, como se me sacasse há anos e tivesse descoberto algo novo sobre mim. – Você é bem mau, sabia disso?
– Conheço a vida pelos livros. E só quero evitar que uma garota se desvirtue no seu caminho. Você nasceu pra ser lambida, como essa colher de sobremesa. – seus olhos inflaram, pude ver um brigando com o outro porque um ficou deveras consternado com tal atrevimento e o outro ardeu em tesão, embora oficialmente ofendida. – Preciso fechar o lugar, acionar o alarme, tomar um banho, ir pra casa, enfim, dormir.
– Peraí, você acha mesmo?
– O quê?
– Isso aí que você disse.
– Sobre ser lambida? Claro que sim. Aliás, eu tenho uma lista de cinco garotas impossíveis que sonho levar pra conhecer meus livros e tudo o mais. Eu poria você entre elas, no duro.
– E quais são as minhas colegas? Só por curiosidade.
– Jessica Alba, Charlotte Gainsbourg, Kate Hudson e Penélope Cruz. Você entrou no lugar da Maria Ribeiro, como representante nacional.
– Quanta honra. Mas acho que vai ficar pra próxima. Me chama um táxi?
Eu sei que ela vai reaparecer. Se lembrar de mim como escritor e não como barista de café fedendo a pastel, ela vai voltar. Eu sei
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